por José Carlos Zanforlin
Julgar é
uma forma de ação humana
Algumas
teorias são tão fabulosas em simplicidade e abrangência que perduram no tempo e
influenciam diversas áreas de nossa manifestação intelectual. A teoria da ação
humana, de Ludwig von Mises, que foi base de seu tratado de economia, é uma
delas. Em suas palavras, “Estas observações preliminares se faziam necessárias a fim de
explicar por que este tratado coloca os problemas econômicos no vasto campo de
uma teoria geral da ação humana. ”[1].
Muito antes de Mises, é emblemático que João, em seu Evangelho, tenha dito que “No princípio era o verbo”, para explicar o
início de tudo. Sabemos todos nós que verbo retrata ação; logo, o princípio
criador de tudo foi/é a ação, provenha de onde provier.
Ação humana
é ato individual e consciente, mesmo quando praticada por muitas pessoas em conjunto
e sincronia, para um mesmo objetivo, como, por exemplo, as competições a remo. Cada
um dos remadores se esforça e sofre com seu remo, independentemente dos outros
atletas. O barco assim movido segue uma mesma e só direção, mas ele não se move
por si, senão por ações humanas, que se adicionam em força e vetor direcional. “A
sociedade em si não existe, a não ser por meio das ações dos indivíduos. É uma
ilusão imaginá-la fora do âmbito das ações individuais”[2].
A ação coletiva do movimento não tem existência por si própria, não é “ação
social”, mas o somatório de ações de cada remador. Significa dizer (Murray N.
Rothbard) “que conceitos coletivos como grupos, nações e estados
não agem ou não existem realmente; eles são apenas construções metafóricas
utilizadas para descrever as ações similares ou conjuntas de indivíduos”.[3]
Esse breve preâmbulo objetiva desfazer noção cada vez mais arraigada,
segundo a qual a vida em comum necessita de regras impostas para que somente
assim seja possível a paz e o progresso entre os indivíduos. A conduta livre
nasce do âmago da consciência de uma pessoa, para um fim que lhe interesse; já a
conduta imposta se origina de um grupo organizado e visa precisamente a impor
aos demais o que lhe aprouver como bom, justo, oportuno e necessário. Porém, é
em meio livre que o ser humano pode desenvolver todas as suas potencialidades.
A pergunta do título se relaciona claramente com o Direito,
área a que teremos de nos referir de passagem, embora este não seja um espaço
para assuntos puramente jurídicos. Para que a coação se distinga do arbítrio e da
mera força bruta é preciso alguma aparência de legalidade, de modo a ser
minimamente aceitável: é quando surge o Direito como instrumento de regulação
da conduta humana. O aspecto negativo dessa função legal se dá quando “a lei é convertida em instrumento de
espoliação”. Gostando ou não, ninguém
pode negar a importância e abrangência das normas jurídicas sobre quem vive em
sociedade, já que quase todas as nossas atividades se submetem a algum tipo de
regra. O Direito como que justifica a coação institucionalizada, pois as leis
são produto do parlamento, votadas pelos representantes dos cidadãos, e isso dá
a aparência de normalidade. É por meio de normas jurídicas que o Estado imprime
deveres e obrigações ao indivíduo. Tenha-se em conta, porém, que a regulação da
conduta não é automática, sem interveniência humana: existe entre a norma que
obriga e a conduta obrigada uma sentença, que é produto de ação praticada por
seres humanos, quando não há cumprimento espontâneo do que é obrigado.
É essencial para o “ajuste fino” do controle do indivíduo que
as normas jurídicas contenham o que para os “iniciados” se denominam conceitos
jurídicos indeterminados, que “são palavras ou expressões indicadas
na lei, de conteúdo e extensão fluídos e vagos”. São exemplos expressões tais como “submeter a risco
anormal”, “mulher de boa conduta”, “boa-fé”, a que podemos acrescentar
“interesse público”, “supremacia do interesse público”, “função social da
propriedade, da empresa, do contrato”, “segurança jurídica”, e outros mais. Quando
se disse que o controle do indivíduo é “operado pelo Direito”, como consta dos
livros jurídicos e das sentenças dos tribunais, sintetiza-se uma afirmação que
não expressa totalmente a realidade, pois o Direito nada mais é que um conjunto
de normas feitas por seres humanos e aplicadas por seres humanos. Logo, quem realiza
o controle são os que fazem as leis e os que as aplicam, e não propriamente o
Direito. O Direito é o pano de fundo, o “ente” que se imagina impessoal e justo
que paira sobre tudo...
Conceitos indeterminados são justificados pelos doutrinadores
como forma de manterem-se atualizadas as normas jurídicas, sem necessidade de
se fazerem novas leis para cada situação. Por isso, concede-se ao aplicador da
lei (juízes) o poder de “preencher” esses vazios significativos ou vaguezas de
sentido, conforme seu intelecto saiba apreender os “Princípios Gerais de Direito” e as particularidades do que se lhe está a julgar. Tais
“princípios” constituem outra noção ampla, vaga, quase mágica. São obtidos do
direito positivo como um todo; do entendimento jurisprudencial total; e, claro,
do componente pessoal de quem procederá a essa “garimpagem”. Não se condenam
irremediavelmente os conceitos indeterminados, pois dada a incapacidade de o
ser humano prever todas as situações passíveis de regulação (segundo crença
generalizada da necessidade de regulação), é prudente que a norma contenha
alguma versatilidade de aplicação. Como exemplo de submeter outras pessoas a
“risco anormal”, veja a hipótese de uma pessoa, em local amplo e desabitado,
sacar seu revólver e atirar para cima; e outra pessoa sacá-lo no estádio de
futebol, cheio de torcedores, e fazer a mesma coisa. O juiz para aplicar o
conceito indeterminado saberá claramente diferenciar as duas situações. Mas, se
o Estado, pelo Juiz, fundamentar no “interesse público” decisão de obrigar um
proprietário a permitir, sem remuneração, que pessoas passem por sua
propriedade, não será tão fácil aceitar-se, sobretudo se a aceitação tiver de
partir do proprietário da terra ou de alguém a ele ligado.
O certo é que a utilidade desses conceitos reside em poderem
ser aplicados, isto é, fazer com que as expressões vagas de uma lei possam
regular situação do dia a dia das pessoas. Para tanto, é imprescindível que se
leve em conta a figura do aplicador do Direito, o juiz, pois a lei outorga a ele
poder de preencher de conteúdo os conceitos indeterminados. Para que esse
“preenchimento” não seja arbitrário, a lei pressupõe que a função de julgar é
isenta e neutra. Sem essas “qualidades” o preenchimento das lacunas legais
seria sempre contestado. Por isso, abordagem crítica da isenção ou neutralidade
do juiz implicaria testar, pelo menos dialeticamente, sua neutralidade/isenção.
Isenção, neutralidade e imparcialidade são tão importantes na
função de julgar que são atributos pressupostos pelo sistema, o que quer dizer
que não há questionamento sobre isso, a menos que o juiz se comporte de maneira
claramente parcial. Mas, sabemos nós, que toda ação humana objetiva satisfação
de desejos, para eleição dos quais temos uma subjetiva escala de valores.
Juízes são seres humanos a quem é dada a especial missão de julgar outros seres
humanos, e julgar é uma forma de ação humana. Portanto, o preenchimento dos
conceitos indeterminados por homens-juízes não está livre de influências e
fatores de seu meio, cultura, forma de vida e da questão de quem paga seu
salário. Certamente a doutrina jurídica passa ao largo dessas questões, e por
um argumento comodamente aceitável: são pontos que estão fora do plano de exame
jurídico da matéria. Esses itens não avaliam a isenção do juiz, que, como se
disse, é pressuposta. Mas, dizemos aqui, são pontos essenciais, pois podem
influenciar e muito o resultado da ação de aplicar os conceitos indeterminados
para decidir.
A crença do interesse do Estado como interesse coletivo
Não é possível demonstrar-se a afirmação
geralmente feita (e acriticamente aceita) de que o interesse público deve
prevalecer sobre o interesse particular. Entretanto, nossa Constituição
assegura a usufruição de alguns valores isoladamente e não socialmente, de modo
coletivo. Mesmo supondo-se compor-se o interesse público do interesse de
muitos, difusa e coletivamente considerados, e, por isso, possa valer mais que
o interesse de poucos ou de um apenas, ainda assim a expressão numérica desse
interesse não pode sobrepor-se (i) a dignidade da pessoa humana; (ii) aos
objetivos fundamentais de construir uma
sociedade livre, justa e solidária; e de promover o bem de todos; (iii) à igualdade
de todos perante a lei;
(iv) à garantia do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade. A prevalência do interesse de muitos
sobre o individual somente pode se apresentar quando é necessário repartir
certo bem entre um conjunto de pessoas. E nem assim se pode falar em interesse
público ou social, mas em equânime administração da escassez, que melhor se
alcançará por ação entre indivíduos, linearmente, do que por subordinação hierárquica.
Por exemplo,
uma decisão judicial pode fundamentar-se no “interesse público ou social” para dar
acesso de uma comunidade a um manancial de água, contra a vontade do
proprietário da área, que pretenda cobrar por ela. Entretanto, a necessidade de
muitas pessoas não se opõe, em princípio, ao desejo/direito do proprietário de
cobrar pela água. Como essa necessidade “geral” é a soma de cada uma das
necessidades pessoais, mas satisfeita individualmente, a justificativa de
“interesse público” não encontra guarida na precisão do ser humano pela água. O
corpo humano precisa de água individualmente, e não socialmente. Porém, o
emprego do conceito indeterminado “interesse público ou social” como que
convence as pessoas de que é justificada a agressão à propriedade privada para
provimento dessa urgência vital.
A experiência
tem demonstrado, todavia (e não apenas em situações tal a relatada acima), que
o sistema jurídico permite ao aplicador da lei impor ao indivíduo sua noção
pessoal de segurança jurídica ou de interesse público. Aí está a razão pela
qual o “interesse público ou social” se expressa geralmente por meio de
conceitos jurídicos indeterminados: para, mascarando o fato de que ninguém sabe
de seu interesse pessoal melhor que ele próprio, obrigá-lo à conduta imposta,
que pode não não coincidir com a sua. Essa é a mecânica da prevalência do
interesse público: são impostos mediante coerção, e aqueles “valores”, que não
tinham conceito, significado ou sentido, passam a constituir a segurança
jurídica e o interesse público vislumbrado e aplicado por um e imposto a todos.
Por isso,
é bom deixar claro que interesse público, pela ótica do indivíduo, é noção vazia
de sentido e extensão, pois cada ser humano só pode avaliar seu próprio
interesse; no máximo, como manifestação de solidariedade, ele tem ciência de
que pessoas a seu lado também têm necessidades semelhantes às suas. Se várias
pessoas usufruem de certo bem ou situação (uma peça teatral), o prazer e
satisfação que sentem são sensações pessoais, individuais, não são apreensíveis
coletivamente pelo indivíduo, mas apenas por ele próprio. Mesmo que uma pesquisa
demonstre que todas as pessoas de um bairro estejam satisfeitas com o
saneamento básico recém-inaugurado, isso não quer dizer satisfação do interesse
público, mas de cada pessoa cuja residência tenha sido beneficiada. Quando se
diz que um manancial de água para consumo humano representa interesse de muitos,
poucos haverão de contestar. Quando se busca preservar uma floresta em prol da
pureza do ar que respira a população de certo lugar, quase ninguém obstará que
aí se façam presentes muitos interesses. Entretanto, o que quase ninguém
examina criticamente é que o interesse de cada pessoa na pureza da água ou do
ar não é usufruído coletivamente, publicamente, socialmente. Aceitam-se sem
pestanejar os juízos qualificativos desses bens como representativos do
interesse público ou social, relegando-se ao esquecimento a inegável
constatação de que não se bebe água coletivamente, nem se respira socialmente,
mas individualmente. O Estado procura valer-se dessas expressões sem conteúdo
específico para fazer-se presente e imprescindível, e expropriar recursos do
indivíduo sob alegação de prestar serviços ao cidadão.
A alegada
identidade entre interesse do Estado e interesse público é outro mito, pois não
é uma afirmação proveniente do sistema normativo, isto é, não se extrai de
nenhuma norma, ou jurídica ou de qualquer outra natureza, que o interesse
público se confunde com ou expressa o interesse do Estado. Surge de incansável repetição
pelo Estado (e por suas extensões, Executivo, Legislativo e Judiciário), mas não
possui valor científico, pois não pode ser falseada nem verificada[4].
O fato de não ser confirmada, nem justificada, reduz sua credibilidade, além de
lhe negar valor científico. Vejam-se, por exemplo, decisões sobre índices
econômicos de correção de ativos financeiros, fixados pelo Estado por ocasião
de planos econômicos: são proferidas em nome expresso ou implícito do interesse
público para negar ao indivíduo a aplicação do índice contratualmente fixado (e
conceder ao Estado o “direito” de furtar-se ao cumprimento de pacto que se
realizou sob sua própria legislação). E isso simplesmente porque o valor
resultante da condenação seria muito elevado: não despendendo o Estado essa
quantia, atender-se-á a certo “interesse público” em que é melhor ao Estado
reter esses recursos que os destinar a cada indivíduo lesado pela alteração, ou
não aplicação do índice de correção contratualmente previsto. Tais decisões não
levam em conta que a magnitude da condenação do Estado é decorrente da
magnitude de sua lesão aos interesses individuais, e que a justiça intrínseca
da decisão não se relaciona com a aritmética! Somente o Estado é capaz de causar
danos tão elevados e abrangentes de tantas pessoas.
Some-se a
isso a constatação de que o conceito de interesse público não é um dado obtido
diretamente pela razão, mas afirmado a
posteriori, e imposto por coerção. Já a noção de interesse individual é
obtida diretamente da razão, é um dado a
priori: cada um sabe (sem precisar explicar por que) o que é bom para si
mesmo, o que lhe agrada e o que lhe não agrada, o que lhe causa bem ou mal. A
própria escolha de uma ação em vez de outra (ainda que nunca praticada antes)
não carece de experiência anterior. Em outras palavras, o interesse individual
é satisfeito espontânea e livremente, e não precisa ser justificado se não
invadir outros direitos individuais; já o interesse público é imposto mediante
coerção, o que afasta, pela ótica do Estado, necessidade de justificação. A
coercibilidade liga-se ao interesse público, a espontaneidade é própria do
interesse particular. Ninguém se satisfaz sob coerção e a imposição desta para
realização de certo interesse público, a que nenhum indivíduo é dado conhecer
ou eleger, jamais pode significar obtenção de bem-estar. Ora, essa alegada
identidade entre interesse do Estado e interesse público favorece ao Estado,
que detém o monopólio da força para impô-lo. Por isso suas intervenções no
domínio de interesse do indivíduo se fazem sob o argumento do “interesse
público”, como eufemismo amenizador de sua ação invasiva do direito individual.
Essa matéria é desenvolvida por ótica eminentemente jurídica em publicação do
autor na Revista Seleções Jurídicas da COAD[5].
Conflitos entre indivíduos e entre esses e o Estado
É possível destacarem-se dentre os conceitos indeterminados os
que se empregam na solução de conflitos entre indivíduos, dos que objetivam resolver
conflitos entre o Estado e o indivíduo. Expliquemos. Há uma classe desses
conceitos claramente referida a qualidades, estados e situações atinentes a
relações privadas entre indivíduos. Por exemplo, “boa-fé”, “intenção das
partes”, “boa conduta”, “pessoa de diligência normal”, e outros mais. Esses
conceitos, que se preencherão conforme o material trazido a julgamento, somente
se “materializam” na dinâmica do processo, no confronto dialético entre autor e
réu. Há outra classe, entretanto, que demanda igualmente intermediação judicial
para preenchimento do conceito, mas que contrapõe interesse do indivíduo ao do
Estado. O confronto dialético também se fará necessário (e é previsto na lei
processual, ação/contestação). Geralmente esses conflitos se resolvem por alegação
de “interesse público” e “função social”. Para aceitação do veredito (que é
imposto), qualquer que seja ele, é imprescindível aceitação prévia e axiomática
da sabedoria e, principalmente, da isenção do juiz que profere a sentença, como
se disse antes. Isso porque o interesse atribuível ao Estado não pode ser
avaliável e desfrutável individualmente.
Observe-se que é mais fácil pressupor-se e aceitar-se isenção
do magistrado que resolve conflitos entre indivíduos do que entre esses e o
Estado. É que, sendo a atividade de julgar por ele monopolizada, não é possível
dissociar o juiz do Estado. Ainda mais que seu salário e vantagens são
oriundas de arrecadação tributária. Portanto, se o conflito é entre Estado e
indivíduo, haverá alguma dúvida sobre a isenção do juiz. Se ao julgar litígio
entre Estado e indivíduo sua isenção já não parece tão pacífica, imagine-se
quando a lei contenha conceitos indeterminados que tenham de ser preenchidos
pelo juiz para solução desses conflitos!
Absolutamente não se coloca em mínima dúvida a idoneidade do
julgador, mas não se pode desconhecer quanto seu grau de “imersão” no âmago do
Estado pode interferir, mesmo inconscientemente, em prol de um suposto “bem
coletivo”, a confundir-se com o interesse do Estado. E, então, a vitória
processual desse “bem coletivo” poderá significar manifesta agressão e, por
isso, injustiça em seu mais amplo grau ao direito do indivíduo.
A distinção entre interesse coletivo e individual
dificilmente pode ser estabelecida, pois não se mensura nem se avalia o
“coletivo”, mas, sim, o individual, subjetivo e modificável. Mesmo que
estatística revele que cem por cento dos habitantes do local em que se fez
saneamento básico estejam satisfeitos, ainda assim não se pode falar em
interesse público ou social. A satisfação é de cada indivíduo com o saneamento.
Em consequência, a alegada identidade entre interesse coletivo e interesse do
Estado é destituída de sentido para modelar o interesse individual. Pior: torna-se perigosa quando a lei, literatura
jurídica e jurisprudência passam a difundir, sem nenhum fundamento, que o
interesse do Estado é a expressão do interesse coletivo. A partir daí se
estabelece que o bem coletivo é superior e mais importante que o do indivíduo,
sem que para tal conclusão haja um mínimo de comprovação.
Então o que é função social?
Importantes normas jurídicas como a Constituição, o Código
Civil e a Lei das Sociedades Anônimas se utilizam da expressão “função social”,
mas não a conceituam. Entretanto, mesmo assim, essa expressão vem sendo
utilizada pelo Estado para regular direitos individuais, limitá-los e
expropriá-los. Na Constituição, ao lado da garantia do direito de propriedade, é dito que ela deve atender sua “função social”[6].
No Código Civil fala-se de uma função social do contrato sem nenhuma especificação do que seja ou de como
entes privados podem contratar com vistas a essa tal “função”[7].
E na Lei das S.A. o legislador atribui ao acionista controlador o dever de agir
para que a sociedade cumpra sua função social.[8]
O senso comum nos diz que há total contradição entre (i) propriedade
privada, (ii) contrato entre pessoas e (iii) objetivo de uma sociedade e essa
tal “função social”, pela qual a mão do Estado se imiscui nesses interesses. Quem
trabalha com o Direito sabe o quanto se gasta em tinta e papel para bem falar
dessa “função social”. Lemos, lemos, mas sempre ficamos com a impressão de não
havermos captado tudo o que se quis dizer... E o dia a dia demonstra que os
conceitos indeterminados permitem ao aparato estatal contrapor ao indivíduo um
suposto interesse “coletivo”, que geralmente prevalece sobre o primeiro quando
em conflito. Essa precedência do “coletivo” sobre o individual vem amparada
pela “proteção” do Estado ao bem “coletivo”. Sabemos que essa prevalência do
coletivo sobre o individual é pura fantasia, e técnica quase subliminar de
convencimento da essencialidade do Estado.
Essa “função social”, de mãos dadas com o Governo, que se
arvora representante do interesse coletivo, é cada vez mais empregada pela
legislação e pelos tribunais. É possível mesmo que nos sintamos confusos e até
envergonhados de possuirmos interesses individuais, por causa de expressões
como essa, repetidas sempre, como um mantra. Curioso é que provém dos empreendedores
a geração de riqueza a que se lança avidamente o Estado para manter-se. E
quanto maior for o Estado, mais terá ele de arrecadar. Ayn Rand escreveu um
romance chamado A Revolta de Atlas, em que buscou retratar o fim a que essa ganância
pode levar.
Deixemos à razão de cada um buscar o sentido da expressão
“função social”, depois do que se escreveu aqui. Algumas noções já foram fixadas,
como a dicotomia entre indivíduo e coletividade; entre liberdade e coação;
entre empreender e expropriar. Menos por este breve
artigo, mas por todo conhecimento acumulado nas obras aqui mencionadas, é
possível ao interessado identificar a técnica de controle utilizada pelos
grupos que dizem “servir” à coletividade.
--
José Carlos Zanforlin é advogado.
[3] http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1253
- O
individualismo metodológico
[4] Ver Karl Popper in Conjecturas e Refutações, Ed.
Universidade de Brasília, 4ª ed., 1972: “Todo teste genuíno de uma teoria é uma
tentativa de refutá-la. A possibilidade de testar uma teoria implica igual
possibilidade de demonstrar que é falsa ([...] Pode-se dizer, resumidamente,
que o critério que define o status científico
de uma teoria é sua capacidade de ser refutada ou testada”. Pág. 66.
[5]
“Modulação de Efeitos” na Declaração de In-Constitucionalidade.
Inconstitucionalidade do Art. 27 da Lei nº 9.868/99, in http://www.coad.com.br/busca/detalhe_42/3732/Doutrina
[6] Constituição, arts. 5º, XII e
XIII; 182, 184 e 186
[7] Código Civil, arts. 421, 1.228 e
2.035
[8] Lei das S.A., arts. 116, § único
e 154.
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