Traduzido por Flávio Ghetti
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Defensores do processo de livre mercado sempre enfatizam os benefícios da competição. O processo competitivo permite fazer considerações constantes. Testando, experimentando e adaptando em resposta às mudanças nas situações, a competição mantém as empresas constantemente com os pés no chão para servir a seus clientes. Tanto analiticamente quanto empiricamente podemos ver que sistemas competitivos produzem melhores resultados do que sistemas centralizados ou monopolísticos. Por isso é que em livros, artigos de jornal e aparições na TV os defensores do livre mercado enfatizam a importância de mercados competitivos e opõe-se às restrições à competição.
Porém, muitas pessoas ouvem elogios à competição e escutam (isto é, associam mentalmente) termos como hostil, implacável ou lobo comendo lobo. Eles pensam se a cooperação não seria melhor que tal postura antagônica perante o mundo. O investidor bilionário George Soros, por exemplo, escreveu no Atlantic Monthly, “Competição demais e cooperação de menos podem causar injustiça e instabilidade”. Ele vai adiante e diz que seu “ponto principal … é que a cooperação é parte do sistema tanto quanto a competição, e o slogan “sobrevivência do mais apto” (survival of the fittest) distorce este fato”.
Agora, deveríamos observar que a expressão “sobrevivência do mais apto” raramente é usada pela defesa da liberdade e do livre mercado. Ela foi cunhada para descrever o processo de evolução biológica, e para referir-se à sobrevivência dos traços que são melhores ajustados ao ambiente; ela até pode ser aplicável à competição de empresas no mercado, mas ela certamente nunca pretende implicar a sobrevivência só dos mais aptos num sistema capitalista. Não são os amigos, mas os inimigos do processo de mercado, que usam esta expressão, “sobrevivência do mais apto”, para descrever a competição econômica.
O que precisa ficar claro é que aqueles que dizem que seres humanos “são feitos para a cooperação, não para competição” falham em perceber que o mercado é cooperação. De fato, como discutido a seguir, trata-se de pessoas competindo para cooperar.
Individualismo e Comunidade
Similarmente, oponentes do liberalismo clássico têm sido rápidos em acusar os liberais de favorecer o individualismo “atomístico”, no qual cada pessoa é uma ilha até para si mesma, preocupada apenas com seu próprio lucro, sem nenhuma consideração pelas necessidades ou desejos de outros. E. J. Dionne Jr., do Washington Post, tem escrito que os libertários modernos acreditam que “indivíduos vêm ao mundo como adultos completamente formados, que deveriam aderir à responsabilidade por seus atos desde o momento de seu nascimento”. O colunista Charles Krauthammer escreveu numa resenha de “What It Means to Be a Libertariam”, de Charles Murray, que até onde pôde acompanhar Murray, a visão libertária era “uma corrida de individualistas desiguais, cada qual vivendo numa cabana, no topo de uma montanha, com uma cerca de arame farpado e um aviso “Não entre” do lado de fora”. Como ele esqueceu de incluir “cada um armado até os dentes”, eu não consigo imaginar.
É claro, ninguém atualmente acredita no tipo de “individualismo atomístico” que professores e eruditos gostam de ridicularizar. Nós vivemos juntos e trabalhamos em grupos. Como alguém poderia ser um indivíduo atomístico em nossa sociedade complexa, não está claro. Isto significaria comer somente o que você plantar, vestir o que você costurar, morar numa casa que você mesmo construiu, restringir-se a remédios naturais que você extraiu de plantas? Alguns críticos do capitalismo ou defensores do “retorno à natureza” - como o Unabomber ou Al Gore, se ele realmente acredita no que escreveu em Earth in the Balance – devem endossar tais planos. Mas poucos libertários desejariam mudar-se para uma ilha deserta e renunciar aos benefícios do que Adam Smith chamou de A Grande Sociedade, a sociedade produtiva e complexa possibilitada pela interação social. Alguém poderia pensar, portanto, que jornalistas sensíveis iriam parar, olhar para as palavras que digitaram, e pensar consigo, “eu devo ter deturpado esta posição. Eu deveria voltar e ler os escritores libertários novamente”.
Em nossos tempos, esta notícia exagerada – sobre isolamento e atomismo – tem sido muito danosa à defesa do processo de livre mercado. Nós devemos deixar claro que concordamos com George Soros em que “cooperação é tanto parte do sistema quanto competição”. De fato, nós consideramos a cooperação tão essencial para o florescimento humano que não queremos só falar disto, nós queremos criar instituições sociais que a tornem possível. É a isto que direitos de propriedade, governos limitados e império da lei dizem respeito.
Numa sociedade livre, indivíduos gozam de direitos naturais imprescritíveis, e devem mostrar-se à altura da obrigação de respeitar os direitos de outros indivíduos. Nossas outras obrigações são aquelas que nós escolhemos assumir por contrato; não é só por coincidência que uma sociedade baseada no direito à vida, liberdade e propriedade produz paz social e bem estar material. Como John Locke, David Hume e outros filósofos liberais clássicos demonstraram, nós precisamos de um sistema de direitos para produzir cooperação social, sem o qual as pessoas podem alcançar muito pouco. Hume escreveu em seu Treatise of Human Nature que as circunstâncias confrontando os humanos são: (1) nosso interesse próprio, (2) nossa necessariamente limitada generosidade frente aos outros, e (3) a escassez de recursos disponíveis para satisfazer nossas necessidades. Devido às circunstâncias, é necessário que nós cooperemos uns com os outros, e ter regras de justiça - especialmente considerando propriedade e troca – para definir como nós podemos fazer isto (cooperar). Estas regras estabelecem quem tem direito a decidir como usar uma porção particular de propriedade. Na falta de direitos de propriedade bem definidos nós enfrentaremos constantes conflitos sobre este problema. É nossa concordância com direitos de propriedade que nos permite empreender tarefas sociais complexas de cooperação e coordenação pelas quais alcançamos nossos propósitos.
Seria belo se o amor pudesse realizar esta tarefa, sem toda a ênfase no interesse próprio e direitos individuais, e muitos oponentes do liberalismo têm oferecido uma visão apelativa da sociedade baseada na benevolência universal. Mas como Adam Smith ressaltou, “nas sociedades civilizadas (o homem) permanece o tempo todo na necessidade de cooperação e assistência das grandes multidões”, já que em toda a vida ele nunca poderá fazer amizade com uma pequena fração do número de pessoas de cuja cooperação ele precisa. Se dependêssemos inteiramente da benevolência para produzir cooperação nós simplesmente não poderíamos executar tarefas complexas. Dependência do interesse próprio de outras pessoas, em um sistema de direitos de propriedade bem definido e trocas livres, é a única maneira de organizar uma sociedade mais complicada que uma pequena vila.
Sociedade Civil
Desejamos nos associar com outros para alcançar objetivos úteis – produção de mais alimento, troca de bens, desenvolvimento de mais tecnologia – mas também porque sentimos uma profunda necessidade humana por ligação, por amor, afeição e comunidade. As associações que formamos com outros compõem o que chamamos de sociedade civil. Estas associações podem tomar uma surpreendente variedade de formas – famílias, igrejas, escolas, clubes, sociedades fraternas, condomínios, grupos de vizinhos, associações de bairros e uma miríade de outras formas de associações comerciais tais como parcerias, corporações, sindicatos e associações de negócios. A sociedade civil pode ser definida, em sentido amplo, como todas as associações naturais e voluntárias na sociedade.
Alguns analistas distinguem entre organizações sem fins lucrativos e comerciais, argumentando que empresas são parte do mercado, não da sociedade civil; mas eu sigo a tradição de que a real distinção é entre as que são coercivas (estado) e aquelas naturais e voluntárias (tudo mais). Se uma associação particular é estabelecida para realizar lucros ou algum outro propósito, a característica chave é que a participação nela seja por escolha voluntária.
Com toda a confusão contemporânea sobre sociedade civil e “propósitos nacionais”, deveríamos lembrar a observação de F. A. Hayek de que as associações que compõem a sociedade civil são criadas para alcançar propósitos particulares, mas a sociedade civil como um todo não possui um propósito particular; ele não é projetado, emerge espontaneamente de todas aquelas associações propositais.
O Mercado como Cooperação
O mercado é um elemento essencial da sociedade civil. O mercado surge de dois fatos: de que seres humanos podem realizar mais em cooperação com outros do que individualmente, e de que podemos reconhecer isto. Se fôssemos uma espécie para a qual a cooperação não fosse mais produtiva que o trabalho isolado, ou se fôssemos incapazes de compreender os benefícios da cooperação, então permaneceríamos isolados e atomísticos. Mas pior do que isso, como explicou Ludwig von Mises, “cada homem seria forçado a ver todos os outros homens como inimigos; seu anseio pela satisfação de seus próprios apetites iria conduzi-lo a um conflito implacável com todos os seus vizinhos”. Sem a possibilidade de benefício mútuo da cooperação e da divisão do trabalho, nenhum sentimento de simpatia e amizade, nem a ordem do mercado poderia emergir.
Através do sistema de mercado, indivíduos e empresas competem para cooperar melhor. General Motors e Toyota competem para cooperar comigo em alcançar minha finalidade de “meio de transporte”. AT&T e MCI (empresas de telefonia) competem para cooperar comigo por minhas metas de comunicação. De fato, eles competem tão agressivamente por meu serviço que eu cooperei ainda com outra empresa de comunicação que me provê com “sossego mental” via secretária eletrônica.
Críticos do mercado sempre se queixam de que o capitalismo encoraja e recompensa o interesse próprio. De fato, pessoas sob um sistema político cuidarão de seu interesse próprio. Os mercados canalizam seu interesse próprio em direções socialmente benéficas. Num livre mercado as pessoas alcançam seus propósitos encontrando o que outras pessoas desejam, e tentando ofertar. Isto pode significar muitas pessoas trabalhando juntas para fazer uma rede de pesca ou uma estrada. Numa economia mais complexa, isto significa alguém buscando seu próprio lucro através da oferta de bens e serviços que satisfaçam as necessidades e desejos de outros. Trabalhadores e empreendedores que melhor satisfazem estas necessidades serão recompensados; aqueles que não satisfazem descobrirão logo, e serão encorajados a copiar seus competidores mais bem sucedidos, ou tentar uma nova abordagem.
Todas as diferentes organizações econômicas que vemos no mercado são experimentos para encontrar a melhor maneira de cooperar para alcançar propósitos mútuos. Um sistema de direitos de propriedade, a regra da lei, o governo mínimo, possibilitam o alcance máximo para as pessoas experimentarem novas formas de cooperação. O desenvolvimento de corporações possibilitou-nos experimentar tarefas econômicas mais extensas do que indivíduos ou parcerias poderiam realizar. Organizações, como condomínios, fundos mútuos, companhias de seguro, cooperativas de trabalhadores e outros, são tentativas de resolver problemas econômicos particulares através de novas formas de associação. Algumas destas formas revelam-se ineficientes; muitos dos conglomerados corporativos dos anos 60, por exemplo, provaram ser impossíveis de administrar, e os acionistas perderam dinheiro. O rápido feedback do processo de mercado fornece incentivos para as formas bem sucedidas de organização, que serão copiadas, e as formas mal sucedidas, serão desencorajadas.
Cooperação é tanto parte do capitalismo como competição. Ambas são elementos essenciais do simples sistema de liberdade natural, e muitos de nós passamos mais tempo cooperando com sócios, colaboradores, fornecedores e clientes do que competindo.
A vida seria de fato desagradável, bestial e curta se fôssemos solitários. Afortunadamente para nós, numa sociedade capitalista isto não se dá.
* Este ensaio é um capítulo do livro The Morality of Capitalism, de Tom G. Palmer.
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David Boaz é executivo e vice presidente do Cato Institute e conselheiro para o Students For Liberty. Ele é o autor de Libertarianism: A Primer e editor de cinquenta outros livros, incluindo The Libertarian Reader: Classic and Conteporary Writings from Lao Tzu to Milton Friedman. Tem escrito para jornais como o New York Times, Wall Street Journal e The Washington Post, é um frequente comentarista na TV, no rádio, e escreve regularmente para blogs e sites como Cato@Liberty, The Guardian, The Australian e a Encyclopedia Britannica.
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